A luz do carro ofuscou-me por completo ao atravessar a estrada. Lembrei-me logo do natal, de quando eu, em mais pequeno, ficava vidrado com as luzes da gigante árvore de natal que era montada lá em casa.
O carro buzinou, fazendo-me sair apressadamente do meio da estrada.
A noite estava novamente fria e o som irritante da igreja a dar as horas há muito que tinha passado. Caminhava agora sobre o passeio, tentando procurar o abrigo mais próximo. A chuva começava a cair.
A pouco e pouco ia sentindo a água gélida a escorrer pelo meu pelo até que parei o esforço que fazia nas minhas quatro patas quando um novo carro passou a alta velocidade rente ao passeio, fazendo com que me recolhesse perto dos caixotes do lixo que, por vezes, em noites como esta, eram o meu refúgio.
Refúgio… As palavras que eu agora usava… Outrora já chamara a um refúgio de Casa. A minha casa.
Era do natal que mais me lembrava. Claro que também me lembrava dos afetos que os meus donos me davam. Lembrava-me da boa comida que tinha e das brincadeiras com os seus filhos, quando me enchiam de beijos e eu retribuía com fortes lambidelas que lhes causavam as maiores gargalhadas. Mas o natal era o natal. A proximidade, o carinho de toda a família, e… e sobretudo algo que me fazia gelar o coração: a lareira. Para além do calor que me dava, tinha sido onde tinha ajudado o meu dono a suportar os seus corações partidos ou até mesmo o seu pedido de casamento bem-sucedido. Tínhamos sido os melhores amigos… até ele me abandonar.
Um relâmpago rasgou os céus e iluminou-me o caminho fazendo-me afastar as memórias dolorosas, aquelas que me rasgavam o coração de tamanha intensidade. Que me faziam sentir ainda mais abandonado do que já fora. Faziam-me sentir um animal indesejado quando tanto de mim tinha dado. Tinha dado tantos momentos de alegria e de zanga saudável ao meu dono para, no fim, acabar a vaguear por um bairro que nunca tinha visto. E do meu dono? Nem sinal.
Impregnado no meu sofrimento aproximei-me cauteloso da casa que em outras vezes me acolhera. Não as pessoas que lá moravam, não… ninguém me tinha dado abrigo e eu também, magoado que estava, não fazia por o pedir. Mesmo estando esfomeado, em que havia dias em que nada comia, ou doente, aprendia a ultrapassar a agonia sozinho.
Saltei para cima do muro onde quase escorregava pela chuva insistente e, com um breve suspiro, deitei o meu corpo ferido e molhado sobre a relva, abrigado por uma árvore que era minha companhia. Enrolei-me sobre mim, juntando também a cauda às minhas patas, na esperança de me aquecer. Na esperança de tornar a noite mais suportável.
Podiam perguntar-me porque não me aventurava por esse mundo fora, mas era pelo gesto que viria a seguir…
Pela janela da sala que era agora fechada, um rapaz olhava-me. Ele já me conhecia. Sabia que se se aproximasse eu iria fugir, mas isso era algo que ele já não fazia. Simplesmente me olhava, um olhar caloroso, e sorria afavelmente.
– Filho, anda para dentro!
Ele rapidamente fechou a janela respondendo ao chamamento da sua mãe mas olhou-me ainda uma última vez. Sabia que ele me deixaria ficar ali. Sabia que se fosse outra pessoa me expulsaria do seu jardim com medo que o sujasse, possivelmente, ou pelo ódio a cães.
Eu não fazia mal… só queria um abrigo. Nem comida já pedia, só queria um lugar para passar a noite em que soubesse que ainda havia pessoas como aquela, que me aqueciam o coração. Que me valorizavam sem me conhecer.
Um trovão ribombou dos céus e a minha noite recomeçou, novamente. Como a noite anterior, e a anterior… e talvez a do ano passado.
A chuva voltou a cair. Podia estar gelada, mas o meu coração quente já estava…