Boa noite leitores,
Foi ontem que acordei com esta história na cabeça e mal conseguia aguentar para que a pudessem conhecer. Era suposto ser um conto, ou seja, pequeno, pelo que fui encurtado muita coisa até para não se tornar cansativo ler num monitor, mas espero que gostem (e espero ter saído bem em escrever na 3ª pessoa, pois como sabem, escrevo sempre em 1ª).
Quero também pedir desculpa pela formatação que aqui o meu amigo WordPress fez, mas não consigo mesmo mudar 😦 .
CHUVA QUENTE
O vento seco daquele mês de julho fustigava o rosto da avó Van, que, naquela noite de verão, acolhia os seus netos. Os restos dos quentes raios solares ainda iluminavam suficientemente o céu para que, no seu coração, uma recordação antiga tivesse dado vida a uma lágrima que escorreu tristemente pelo seu rosto já envelhecido. Levou a mão trémula à cara e, carinhosamente, pegou na lágrima que começava já a secar.
– Avó!! Avóóó!!! – Gritavam as crianças, correndo até ao alpendre da casa de campo, indo ao encontro da avó.
– Que foi, meus queridos? Oh Tomás!, não me digas que andaste outra vez a puxar os cabelos à tua irmã. – Tomás era o neto mais novo, tinha os seus cinco anos e mostrava-se já demasiado esperto.
– Não, vó. – Beatriz abraçara-se às pernas de Van, que sorriu calorosamente. – Só queremos que nos contes uma história antes de irmos nanar.
Não conseguindo evitar sorrir, sentaram-se todos nas cadeiras do alpendre.
A avó ponderou ainda algum tempo até que, ao fim do que pareceu uma eternidade para aquelas crianças, começou a contar a história.
– Era uma vez…
– Porque é que todas as histórias começam sempre com “Era uma vez”?
– Oh seu tonto, deixa a vó contar a história! – Ralhou Beatriz ao irmão, aconchegando-o mais para junto de si, não conseguindo esconder o amor que sentia por ele.
A avó, sorrindo ao presenciar tal amor, recomeçou.
– Era uma vez uma rapariga chamada Valentina. Valentina vivia com os seus pais numa pequena cidade. A sua vida era passada, ora a ajudar nas tarefas domésticas, ora a estudar e passear com os seus amigos. Era assim que levava a sua vida, até chegar aos seus dezanove anos e ter-se apercebido que ainda não tinha encontrado o amor da sua vida. Começou a ficar desesperada e a isolar-se dos seus amigos e dos seus pais. Passava horas a chorar, desesperada e com medo de passar o resto da sua vida sozinha. A rapariga calorosa que um dia fora, tinha quase que desaparecido.
» Um dia, depois de muitas insistências dos seus pais, acabou por sair para se encontrar com os seus antigos amigos. Era inverno e fazia muito frio à noite, pelo que só pedia que não começasse a chover. Pedia e pedia até que, como se alguém a tivesse ouvido e quisesse contrariar, uma tromba de água caiu sobre a cidade.
» Valentina ficou desesperada e começou a chamar nomes a S.Pedro por lhe ter estragado a disposição para ir sair. Correu para se abrigar da chuva que parecia aumentar a cada instante, até se conseguir refugiar sobre o toldo de uma pastelaria da praça central.
» “Que rapariga tão linda!”, tinha dito uma figura masculina, também ela abrigada sobre a chuva que pareceu abrandar. Valentina ficou assustada com a voz trémula e rapidamente puxou a sua pequena carteira para junto de si, pensando que iria ser assaltada. “Calma, não te quero fazer mal!”, respondeu o vulto ao perceber o comportamento da rapariga. “Sou só um rapaz…”
» Valentina, ainda receosa, pediu-lhe para ele sair das sombras e ele assim o fez. Tinha sido o rapaz mais belo que alguma vez vira. O seu cabelo negro, e molhado, caia num rosto algo anguloso. Os seus olhos pareciam iluminados por uma chama interior, mostrando um olhar azulado que a perscrutava.
– O que é pers…perscrutar Avóóó? – Perguntou o pequeno, interrompendo novamente a história.
– É observar com muita atenção, estás a ver?
O seu neto assentiu e ela continuou a história.
– Valentina estava ainda assustada, mas não podia deixar de se sentir atraída por aquele rapaz que lhe estava diante dos olhos. “Como te chamas?”, acabou por perguntar, a medo. “Não! Primeiro tu. Como te chamas?”. Valentina sentiu-se enganada pelo rapaz mistério e, de tão cansada que estava, saiu do abrigo e começou a voltar para casa.
– E depois, e depois? – Beatriz não conseguia esconder o seu entusiasmo o que, de certa maneira, comoveu a velha senhora.
– Calma minha querida… O jovem rapaz foi atrás dela, claro…
» A chuva parecia ter-se intensificado e Valentina não deixou de rogar mais pragas a S. Pedro que parecia querer contrariá-la.
– A sério! Que porcaria de tempo! – Protestou, exasperada.
– Oh… Não te vás embora… – O rapaz parecia agora mais triste e um breve rubor acompanhou o seu entristecimento.
– Não me vou embora? Queres que fique aqui à chuva?
– Oh… pensei que gostavas.
– Para de estar sempre a dizer “oh”… – E, sem que ela conseguisse acabar, a chuva parou com um estalar de dedos do rapaz misterioso.
– Como… é que… como é que tu fizeste isso?
Valentina sentiu o medo congelar todos os seus ossos, e por momentos, pareceu-lhe impossível sequer voltar a respirar.
– Por favor, Valentina… Não tenhas medo… Por favor… Não faço mal, não a ti…
– QUEM ÉS TU?? – Voltou a insistir Valentina, exasperada.
– Sou o Pedro! Como o… hum… como o S.Pedro…
Valentina estava cada vez mais chocada com o que estava a presenciar e, sem ainda conseguir afastar o gelo que sentia, perguntou, confusa:
– São Pedro… como o S. Pedro que controla o tempo?
– A…sim… – O rapaz mostrou-se envergonhado e, naquele momento, de uma maneira quase mágica e sem que Valentina conseguisse perceber, ela soubera que tinha ficado apaixonada pelo rapaz.
O medo que sentira antes tinha desaparecida, e, como se uma lufada de ar fresco a tivesse abraçado, Valentina sentiu-se a pessoa mais quente do mundo. Feliz e amada.
– Valentina?
– Sim…
– Posso aproximar-me? Não tens medo?
A velha senhora observava os netos com atenção, que se mostravam cada vez mais curiosos com aquela estranha história… fez-lhe lembrar…
– AVÓÓÓ!! E depois?
– Oh, desculpem… Valentina não teve medo. Pedro, só pela maneira como tinha falado, pela maneira como dissera cada letra do seu nome dos seus lábios apetitosos, tinha feito com que o seu coração, já desesperado por amor, voltasse a bater.
– Lábios apetitosos?
– Cala-te, estúpido! É uma história! – A avó Van riu-se com o comentário da neta ao irmão e continuou novamente a história, lembrando-se que teria de ser mais simples.
– Valentina apaixonava-se mais a cada dia que passava na companhia do seu novo amigo. E, em pouco tempo, de amigo passou para algo mais. Ambos começaram a namorar e, nesse tempo, ela foi a rapariga mais feliz à face da terra.
» Passeavam no parque de mãos dadas. Encantavam-se com as gotas de orvalho que Pedro criava. Patinavam na fonte que, depois da meia-noite, se tornava em pista de gelo só para ela e, mesmo antes de Pedro partir para onde quer que ele vivesse, davam beijos apaixonados sobre o luar, que testemunhava tal paixão. Uma paixão tão congelante, mas ao mesmo tempo, tão quente.
» Os meses foram passados, até que, perto do início da primavera, Pedro lhe deu a pior notícia que Valentina poderia ouvir. O seu grande amor iria partir… Estava na altura do frio cortante se ir embora para dar lugar ao calor da primavera e que antecedia o do verão. O que Pedro não sabia era como os Humanos eram frágeis ao amor, cortando também o seu coração…
» Valentina chorou dias a fio, lembrando-se de Pedro a cada lágrima derramada pelos passeios que davam sobre a chuva mágica do seu Deus.
A primavera acabou por rebentar, e com ela, um novo calor preencheu o vazio deixado pelo seu Pedro. Estava ela a passear pela cidade, ainda com os olhos marejadas de lágrimas pelas lembranças cortantes do seu último romance, quando um voz quase que familiar a despertou.
– Uma rapariga tão bela como tu não deveria chorar dessa maneira…
Valentina, com o seu coração aos saltos, virou-se, dando de caras com Pedro! O seu Pedro…
– Pedro! – Exclamou por fim, abraçando desesperadamente o rapaz que a envolveu nos seus braços quentes.
Ela afastou-se rapidamente. Ela sabia que aquele não era “o seu Pedro”.
Apesar de a voz ser praticamente idêntica, bem como o seu rosto, os olhos pareciam fogo. Eram como que uma mistura entre o verde e o amarelo. Eram igualmente radiantes.
– Que és tu?
– Isto vai ser difícil… – confessou o falso Pedro, em voz alta.
Valentina tinha as sobrancelhas arqueadas, mostrando a impaciência que começava a sentir.
– Eu sou o Pedro… mas não o “teu” Pedro…
– Ok… estou confusa.
– Tu conheceste o meu irmão gémeo. Ele é do Inverno… E eu do Verão…
– Ahhh… E não há nenhum para o Outono? – Troçou Valentina.
– Não sejas má. Basicamente só tem de haver um para controlar o frio e outro para controlar o calor. Nessa altura que falaste, trabalhamos os dois. Ouve, é difícil de explicar.
– Então estás a dizer-me que tenho dois Deuses a quererem namorar comigo?
– Quem disse que quero namorar contigo? – Um sorriso malicioso formou-se no jovem rapaz, que irradiava cada vez mais calor para o coração pulsante de Valentina.
A rapariga não deixou de corar.
– Mas sim, é verdade. Queremos-te namorar…
– E porquê?? – A jovem rapariga mostrava-se cada vez mais confusa. – Acho que ando a ficar maluca…
– Não, não andas. Vimos como tu andaste triste à procura do teu amor. Ele existe! E somos nós! Os dois…
– Bonito… – Respondeu, cada vez mais atónita.
– Achas que não custa ver uma rapariga chorar? Que custa não lhe dar o amor que ela merece? Achas que… achas que não tenho vontade de te afagar no meu colo e beijar-te? Dizer que tudo vai ficar bem?
Pedro estava cada vez mais desesperado para que ela acreditasse em si. Que ele era real.
Perdida nos seus pensamentos, começou a chorar.
Pedro, não se contendo, aproximou-se da rapariga, e tomou-a nos seus braços. Abraçou-a de tal maneira que o seu coração se voltou a apaixonar. Mas ela sabia que era errado. Que era o Pedro do Inverno por quem ela ansiava. Ansiava pelos dias frios em que só ele a conseguia aquecer.
– Os dias foram passando e ambos se foram conhecendo melhor, e…
– E, em pouco tempo, de amigo passou para algo mais. Ambos começaram a namorar e, ela foi a rapariga mais feliz do mundo. – Completaram os netos, em uníssono.
– Exatamente. – Riu-se a avó Van. – Valentina sentia-se novamente viva, mas, tinha medo de beijar Pedro do Verão. Sabia que isso causaria um grande desgosto ao seu irmão e tentou sempre esquivar-se. Até que… até que um dia aconteceu.
» Valentina estava sentada num banco de jardim, em abril, na primavera mais quente que tinha presenciado, rodeada pelas mais belas flores, quando os seus lábios foram surpreendidos pelo encontro com os de Pedro do Verão. A princípio tentou afastar-se, mas o seu calor afastou quaisquer pensamentos e, nesse dia, choveu. Choveu durante todo o dia. Durante toda a noite. Valentina podia jurar ouvir os gritos do Pedro do Inverno a ecoar com cada trovão. As noites tornavam-se autênticos pesadelos. Não só se lembrava do seu Pedro, como do peso da traição. Não era só ele que chorava…, era ela também.
Valentina parou de contar a história, olhando para os netos que não escondiam a sua tristeza… Nem a velha senhora escondeu a lágrima que lhe rolava pela cara.
– Avó? – Começou Beatriz… -Por isso se diz que em abril, águas mil?
Com um leve sorriso, a avó corroborou com o que a neta tinha dito e prosseguiu.
– Valentina, não aguentando a dor que estava a sentir por amar os dois irmãos ao mesmo tempo, foi para a rua na noite mais agitada que tinha presenciado. Era como um campo de batalha entre os dois irmãos. Nem as gotas da chuva que caiam intensamente escapavam a tal guerra, aquecendo tanto que, antes de chegar ao chão, já estavam novamente a evaporar.
» Os dois irmãos materializaram-se à sua frente e, vendo o sofrimento de ambos, Valentina decidiu tomar a decisão mais difícil da sua vida…
– Nós não podemos ficar juntos… eu ama-vos aos dois… E sei que, ao mesmo tempo, vocês são como um só…
– Valentina… – Sussurram os irmãos em uníssono.
– Nunca amarei ninguém com a intensidade com que vos amo. Adorei os dias que passei com vocês. Mas vocês são Deuses… e eu uma mera humana…
– Se todas as humanas fossem como tu… – Começou o Pedro do Inverno, sessando com a chuva. Para um Deus, o seu corpo tremia como se uma criança fosse. Pedro do Verão não estava diferente. Estava com tanto medo que o calor que emanava lhe tinha secado a camisola ensopada.
– Se vocês realmente me amam, têm de me deixar ir… – Proferiu Valentina, a custo.
Sem conseguir mais uma palavra dizer, correu para dentro de casa, não deixando de se virar uma última vez para trás.
– Nunca te iremos esquecer… Estaremos sempre a olhar por ti. – Disse Pedro do Verão.
– Nós amamos-te, Van.
Foi com as palavras do Pedro do Inverno que Valentina se refugiou em casa, sentindo-se mais vazia do que nunca.
A avó Van levantou-se da cadeira, aconchegando os netos que entretanto tinham adormecido.
A história tinha acabado…
Uma lágrima rolou pela sua cara entristecida.
Encaminhou-se para a vedação da varanda e ficou a contemplar a chuva que tinha começado a cair.
– Nunca percebi como, ao fim de tantos anos, ainda me conseguem continuar a amar…
Como que por magia, um arco-íris apareceu-lhe à frente, trazendo com ele os dois irmãos. Estavam tal e qual como ela se lembrava.
– Porque és um ser humano extraordinário. A tua capacidade para amar é algo que nos ultrapassa por completo… Se todas as outras pessoas fossem como tu…
– Cala-te lá, ó pinga amor. – Refilou o do Inverno. – Olha lá como ela, mesmo depois destes anos todos, continua a mesma mulher radiante…
E, com um sorriso radiante, os seus Pedros acariciaram-lhe o rosto com uma brisa quente que antecipou a chuva daquele início de noite.
– Adeus, Van…
– Adeus meninos… – Sussurrou Valentina, corando.
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