Nota: O episódio que se segue revela detalhes da história presentes no livro Esquecido!

As luzes pulsavam naquela noite. E quer fossem verdes, amarelas, vermelhas ou azuis, uma grande parte de mim não conseguia ignorar a cor sombria que se fazia de cada vez que se apagavam. Já tinham passado quatro meses desde os eventos mais significativos da minha vida, e eu simplesmente não os conseguia esquecer.Não pelo arrependimento pela decisão que tomara em perdoar o pai de Filipa.Também não pelo facto de ela agora estar a cumprir pena numa prisão escola e ter ficado com a sua adolescência estragada. Não conseguia esquecer porque,agora, após tudo ter assentando, não sabia o que viria a seguir.

Tenho a noção de que se falasse disto à minha irmã Cátia ou até à minha mãe, elas não iriam perceber. Poderiam apoiar, e abraçar-me, mas não iriam perceber como estava a ser difícil para mim vivenciar este Natal sem o meu melhor amigo. Ou mesmo sem a inocência dos anos anteriores, em que tudo com que me importava, era a música.

Ai.

-Duarte, verdade seja dita: há anos que não tens um Natal normal – retorqui para a árvore de Natal, decorada com dedicação por cada um dos elementos da família.

A minha constatação era verdadeira. Não só no passado lidara com o alcoolismo do meu pai, como com os furtos que fizera para ter algum dinheiro, como me envolvera com a polícia para limpar a minha ficha criminal. Por isso sim: este era o primeiro Natal “a sério”. Limpo de todos os receios e medos que o passado me dera, e isso sim assustava-me. Afinal de contas, se passei toda a minha vida a lutar ou tentar escapar das minhas escolhas, como é que eu deveria de me comportar agora que tudo terminara? Agora que a minha memória voltara em pleno e me dera conta de que já não tenho de olhar para o passado para continuar em frente?

Sei que estou também a ser hipócrita. Que há outro fator a condicionar tudo. Um de meras três letras, e com um peso tão avassalador na vida de cada membro desta família restruturada: o meu pai!

Meses após o ter perdoado, dera-me conta das inseguranças dessa decisão. Se era sensato perdoar alguém que batera na minha mãe no seu momento mais sombrio. E por mais que o arrependimento nos seus olhos fosse visível de cada vez que vinha cá a casa, tivera medo de que a minha mãe e irmã não compreendessem essa escolha. Porque sim, foi uma escolha, e uma que comecei finalmente a interiorizar.Um momento que resultou no convite por parte da minha mãe ao seu ex-marido para passar o Natal connosco e perto dos seus filhos.

Como o Olívio já não está entre nós para me ajudar nestes dilemas, como no passado,decidi fazer o impensável. O aproveitar esta Natal para me dar o descanso de que necessitava.

Peguei na caneta pousada em cima da mesa de jantar, e dirigi-me novamente para a poltrona iluminada pela árvore de Natal. Passava da uma da manhã do dia vinte e três de dezembro e, pela calada da noite, enquanto todos dormiam, decidi escrever um postal de Natal para o Olívio. O meu coração estava apertado,tornando a minha respiração pesada. Mas tinha de o fazer. Nem que fosse por uma última vez…

Olá mano,

Gostava de te dizer que começaria pelo início. Tu provavelmente irias concordar com um gracejo qualquer. Mas não.Tu conheceste o início, o meu início, e sinto que te devo poupar desses anos de adolescência. Muita coisa aconteceu desde que partiste… Sou-te sincero, tentei muitas vezes idealizar esta conversa na minha cabeça, mas agora que aqui estou “contigo”, parece que nada me sai. Que tudo o que esta caneta desenha vem de algum lugar ao qual eu não tenho acesso.

A Filipa foi presa! Ela era a rapariga responsável pela droga. Uma parte de mim parece que sempre soube,sabes? Por meio de todas as desculpas e atitudes, acho que eu próprio já o sabia. Mas perdi a memória, e as coisas complicaram-se. Perdi quatro anos de mim, e sem ti por perto como outrora, senti-me desamparado. Sem o meu irmão.Aquele que, literalmente, tudo sabia sobre a minha vida e me ajudava.

Foste-te embora sem ver este desfecho. E tenho medo de que com a minha escolha, não me tenhas inicialmente perdoado. Foi o pai da Filipa que te tirou de nós no acidente daquela noite, e eu não fiz nada com essa informação. Eu simplesmente queria um desfecho para tudo. Já te tinha perdido a ti, o Marco estava em coma – e agora está ótimo,grato pela vida -, e eu tinha menos anos de mim. Quando vi os olhos da Filipa aquando a sua prisão, senti-me quebrado outra vez. Como tu soubeste, ela foi praticamente o meu primeiro amor. Foram os seus lábios os primeiros em que toquei com convicção, e foi nela que entrei com paixão. Mas o amor é volátil e rapidamente me apercebi que o meu coração nunca fora verdadeiramente dela.Momentos à parte, o pai dela acabou por ser preso semanas depois. A polícia não é burra, e o próprio homem quis ajudar a filha. Parece que afinal sabe o significado de ser-se pai.

As semanas foram passando, o meu cabelo foi crescendo e com ele, o medo de mostrar a minha cicatriz, desapareceu.Comecei a conhecer a Catarina de uma maneira completamente diferente e meu…acho que agora sim, estou mesmo apaixonado. Ela quer ir com calma e eu dei graças a Deus por isso. A minha mãe vai casar no próximo verão. Está tão feliz e radiante, e o Pedro é tão, mas tão bom para com ela. A Cátia também está doidinha e a pensar já nos preparativos. Quer tomar conta de tudo com a minha mãe. Às vezes pergunto-me se não será ela a casar e não a minha mãe.

Provavelmente estás a pensar em como se encaixa o meu pai nisto tudo, mas ele está tão ou mais contente que os noivos. Ele também está bem. Está contente por estar com os filhos, e pelo trabalho lhe estar a correr bem. Acho até que, com as poupanças que tem, vai começar a tirar um curso à noite.

Por muito tempo pensei até que ponto era certo eu perdoar alguém que me fizera mal. Sabemos o quanto a sociedade julga, mas eu estava-me a foder para isso. Desculpa, mas é a verdade! Precisava de dar uma nova oportunidade a todos nós!

Não poderia falar de oportunidades sem referir as que a tua mãe está a dar a si mesma. As vestes pretas ainda lhe acompanham, mas a cada visita diária que lhe faço, a força com que se ergue é crescente. Ajudei-a na limpeza da casa e na arrumação da mesma. Ela queria mudança. Precisava da mudança, e tenho a certeza do quão orgulhoso ficarias dela. Quanto a mim… eu cá ando. Este ano não ingressei em nenhuma universidade.Precisava de pensar no que queria fazer. Tenho tirado umas aulas de música e quero ver como correm. Tenho muita coisa a querer contar pela música e espero ver o meu futuro por meio de cada nota.

Parte dessas histórias contei-te agora, aqui. Mas outra não: sinto a tua falta. A de gozarmos com a minha irmã,as aventuras que tínhamos de carro pela cidade e quando partilhávamos pormenores e observações sobre raparigas. Estavas num caminho tão bom, com a tua força e coragem na recuperação, e foste-te demasiado cedo. Por isso, neste Natal, quero que saibas que essa tua personalidade será como que prenda de Natal, ao me teres passado os teus ensinamentos e me faças sentir que, realmente,aqueles que partiram, nem sempre o fazem verdadeiramente.

Onde quer que estejas, desejo-te um feliz Natal, e quero-te garantir que nunca, mas nunca, serás Esquecido!

Duarte

Natal de 2018

Encontra o Esquecido na Wook

Comenta aqui

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.