Quando há uns meses (ou semanas, para vocês) conversei com o Luís – CEO da Cordel d´Prata -, senti que entrava num território que sempre me maravilhou. Atendendo à profundidade dessa mesma conversa, senti o desejo de vos trazer uma outra entrevista. Uma que fosse complementar o que o Luís Rodrigues tão bem disse, e focar-se num processo que acontece antes de um manuscrito ser publicado. Do que falo? Falo da revisão de um livro. Algo que, quer assegurado por uma Editora, quer procurado de forma independente, está disponível para todos.
Poderia ter sido difícil de encontrar “as perguntas” ou “a pessoa para as responder”, mas sendo honesto, foi das escolhas mais fáceis. Mas quem é esta pessoa? Pois bem, falo-vos da Elga Fontes. Blogger no “Quem Me Lera”, está a licenciar-se em Línguas, Literaturas e Culturas em Lisboa sendo revisora em freelancer desde 2017.

Olá, Elga. Muito obrigado por aceitares este convite. Sinto que não posso começar a entrevista sem antes perguntar: o que faz realmente uma revisora literária?
R: Olá! Antes de mais, muito obrigada pelo convite. Há dias li uma frase de Judith Butcher que dizia que o copy-editor é o defensor do autor e o embaixador do leitor, e acho que não há melhor forma do que essa para definir papel de um revisor. Em termos práticos, o revisor literário é o responsável por assegurar que o texto cumpre as regras linguísticas necessárias a um bom entendimento da história.
É comum vermos os autores (incluindo eu) indicar que “estão a rever o seu manuscrito”, a corrigir as gralhas e incoerências que encontram, assim como a cortar e acrescentar o que sentem faltar. Desta forma, de que maneira o trabalho de um revisor, o teu trabalho, se distingue daquele que um autor dá ao seu texto? Pode, um autor, ser um revisor literário?
R: A questão aqui não é se um autor pode ou não ser revisor literário, mas sim se deve. Um escritor assume-se, perante o seu trabalho, como uma força criativa e isso leva-o a desenvolver um certo tendencionismo. E é normal, porque tal como o amor de uma mãe lhe tolda a visão objetiva do seu filho, o mesmo acontece com o autor e a sua obra. Não é algo inerente à condição de autor, mas à de ser humano. Um revisor literário é um profissional que, através da formação e experiência, oferece uma perspetiva imparcial, capaz de analisar o texto de forma crítica e perceber onde e como o autor o pode melhorar. Há certas coisas que apenas quem está habituado a encarar o texto como ferramenta de trabalho consegue detetar, como, aliás, acontece em quase todos os ramos profissionais.
Um revisor literário é um profissional que, através da formação e experiência, oferece uma perspetiva imparcial, capaz de analisar o texto de forma crítica e perceber onde e como o autor o pode melhorar.
Elga Fontes
Como chegaste até aqui? De que forma te “educas” nestas matérias de carácter editorial?
R: Metendo as mãos na massa. Sinceramente, é mesmo a única forma. Ler muito, escrever muito, estudar muito. Estou sempre à procura de novas oportunidades e novas formações, e tento estabelecer objetivos a curto e longo prazo.
Qual a importância de uma boa e profunda edição?
R: Em uma palavra, fundamental.
Enquanto revisora, quais consideras os maiores desafios e dificuldades?
R: A imprevisibilidade do meio. Há meses em que não tenho nenhum trabalho e outros em que recebo vários pedidos ao mesmo tempo, e com prazos tão apertados que se torna difícil gerir tudo. Faz parte da sina do freelancer.
Quais os “erros” que encontras com mais frequência? E aqueles que achas mais complicados de detetar e/ou trabalhar?
R: Problemas de pontuação (sobretudo com as vírgulas), falta de consistência na voz narrativa e aqueles tropeções que às vezes escapam ao autor, como as redundâncias ou as frases de sentido ambíguo.
Como separas a tua opinião pessoal daquilo que te é dado a ler pelo autor?
R: Primeiro, tenho sempre presente que não há lugar para a minha opinião pessoal na minha relação com o autor e o seu trabalho. Segundo, restrinjo-me aos factos. Cada uma das intervenções que faço tem uma justificação e baseia-se em regras e dados concretos, sejam eles relativos a linguística ou a uma vontade expressa do autor.
Cada uma das intervenções que faço tem uma justificação e baseia-se em regras e dados concretos, sejam eles relativos a linguística ou a uma vontade expressa do autor.
Pela tua experiência, consideras que os autores absorvem corretamente a tua perspetiva, ou achas que a crítica fundamentada e relatada é ainda levada “a peito”?
R: Se for falar só pela minha experiência em concreto, não posso dizer que tenha tido muitos problemas com isso. Como não estou associada a nenhuma editora, quando as pessoas me procuram é porque, geralmente, já estão preparadas para esse “abalo”, e eu também tento sempre acordar com o autor o nível de profundidade pretendido para a revisão, então nunca faço mais do que aquilo que me pedem.
O que mais gostas de fazer neste teu trabalho?
R: Sempre fui apaixonada pela Língua e pela forma como se transfigura em significados. Acho fascinante o poder que as palavras têm sobre nós e a forma como moldam o pensar e o sentir. Poder trabalhar diretamente com esses fenómenos, testemunhá-los e, acima de tudo, compreendê-los, é a minha parte favorita de todo o processo.
Que método utilizas durante um processo de revisão?
R: O mesmo que defendo que um autor deve usar no seu processo de escrita — o faseamento. No caso da revisão, faço várias leituras, cada uma tendo em foco a resolução de diferentes problemas e com diferentes graus de intervenção.
Acreditas que existe alguma vertente no teu trabalho que seja invisível para o “comum dos mortais”?
R: Ui, tantas. Destaco o investimento que um revisor faz em materiais de consulta, como gramáticas, dicionários, entre outros que não são nada baratos, mas essenciais a uma boa revisão. Infelizmente, hoje em dia nem tudo se pode encontrar na internet.
Bem sei que o tempo é um fator de extrema importância no papel de um revisor, mas como encaras a vertente psicológica durante o processo?
R: Tenho sempre muito cuidado com os prazos que estabeleço com os autores e crio um cronograma de trabalho onde defino o número de horas diárias que vou dedicar ao manuscrito, os objetivos para cada sessão e, em situações mais extremas, as horas em que estou terminantemente proibida de sequer pensar em trabalho. Para mim, a organização é a chave.
Não poderia faltar a pergunta “básica” quando se fala destes assuntos: qual a tua opinião a respeito do mercado editorial português?
R: É uma faca de dois gumes. Por um lado, o mercado é tendencioso, elitista e deliberadamente sujeito a um cânone de literatura envelhecido que em nada cativa a nova geração de leitores. Por outro, a dita nova geração de leitores não se traduz em números de compra que justifiquem, ou mesmo que sustentem uma revolução do mercado. É esse o eterno dilema do meio literário em Portugal. A maioria das pessoas não gosta de ler e as que gostam ainda não são suficientes para gerar um impacto.
A maioria das pessoas não gosta de ler e as que gostam ainda não são suficientes para gerar um impacto.
Elga Fontes
Considero uma pergunta profunda, mas preciso de perguntar: como olhas para o trabalho feito pelos revisores das editoras de novos autores e/ou de novas editoras?
R: Depende da editora e depende do revisor. Como leitora, já tive algumas más experiências e chateia-me quando vejo o trabalho de um novo autor “manchado” pela incompetência e falta de consideração de uma editora. Por outro lado, há, felizmente, editoras que assumem esse compromisso e o respeitam em todas as suas fases, como é o caso da Cultura Editora, que não posso deixar de parabenizar pela lufada de ar fresco que tem sido neste meio.
Em termos literários, o que consideras como calcanhar de Aquiles desta nova geração de autores?
R: A pressa em publicar e a falta de investimento em profissionais que ajudem a compor a obra na sua totalidade. Sei que o mercado é injusto e que nem todos conseguem suportar esses custos, mas é importante reter que um livro, além de tudo o resto que já sabemos, é um produto, e que para ter valor comercial precisa de ter qualidade, um fator que não pode ser inerente apenas à história, mas que também deve estar presente no tratamento do texto, na capa, na formatação, nos materiais e até mesmo no marketing.
Que conselho darias a um autor antes de este começar a escrever, durante o processo de escrita e após este escrever a palavra “FIM”?
R: O conselho seria o mesmo para todas as fases: saber separar os processos e as suas respetivas tarefas. A fase da estruturação não é a fase da escrita, a fase da escrita não é a fase de edição e o “FIM” no final do manuscrito não é a porta de entrada para a fase de publicação. É preciso dar a cada fase o tempo e a atenção que merecem, porque cada uma é singular e imprescindível à criação de um bom livro.
Neste final de entrevista, não poderia deixar de te perguntar: o que te levou a este percurso académico e profissional?
R: Sinceramente, não te sei dizer. Não me lembro do dia em que decidi que queria fazer isto, foi algo que foi acontecendo aos poucos. O gosto pela escrita e pela leitura sempre foram uma constante na minha vida e sempre procurei formas de poder expressar essa paixão. Suponho que, a cada nova forma, fui despertando ainda mais esse bichinho em mim e manifestando-o de diferentes formas… o meu curso, as minhas leituras, o bookstagram, o site e, algures pelo meio, acabei por cá chegar.
Obrigado, Elga, pelo teu tempo. Adorei conversar contigo!
Podem ficar a conhecer o trabalho da Elga e os seus serviços em Quem Me Lera.
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